domingo, 18 de janeiro de 2009

AMOR

" Mesmo que Dom Pedro não tenha arrancado e comido o coração do carrasco de Dona Inês, Júlio Dantas continua a ter razão: é realmente diferente o amor em Portugal.
Basta pensar no incómodo fonético de dizer «Eu amo-o» ou «Eu amo-a». Em portugal aqueles que amam preferem dizer que estão apaixonados, o que não é a mesma coisa, ou então embaraçam seriamente os eleitos com as versões estrangeiras:«I love you» ou «Je t'aime». As perguntas «Amas-me» ou «Será que me amas estão vedadas pelo bom gosto, senão pelo bom senso. Por isso diz-se antes «Gostas mesmo de mim?», o que também não é a mesma coisa.
O mesmo pudor aflige a palavra amante, a qual, ao contrário do que acontece nas demais línguas indo-europeias, não tem em Portugal o sentido simples e bonito de «aquele que ama, ou é amado». Diz-se que não-sei-quem é amante de outro, e entende-se logo, maliciosamente, o biscate por fora, o concubinato indecente, a pouca vergonha, o treco-lareco machista da cervejaria, ou o opróbio galináceo das reuniões de «tupperwares» e de costura.
Amoroso não significa cheio de amor, mas sim qualquer vago conceito a leste de levemente simpático, porreiro ou giríssimo. Quem disser «a minha amada» ou, pior ainda «o meu amado» - arrisca-se a não chegar ao fim da frase, tal o intenso e genuíno gáudio das massas auditoras em alvoroço. Amável nunca quer dizer «capaz de ser amado», e, para cúmulo utiliza-se quase sempre no pretérito («você foi muito amável em ter-me convidado para a inauguração da sua Croissanterie»). Finalmente um amor é constantemente aviltado na linguagem coloquial, podendo dizer-se indistintamente de escova de dentes, contínuos que trazem os cafés a horas, ou casinhas de emigrantes. (O que está a contecer com o adjectivo querido constitui, igualmente, uma das tragédias da nossa idade.)
Talvez a prática , mais lastimosamente absurda, muito usada na geração dita eleita, seja aquela de chamar amigas às namoradas. Isto porque os portugueses, raça danada para os eufemismos, também têm vergonha das palavras namorado e namorada. Quando as apresentam a terceiros, dizem «Esta é uma amiga minha, a Susy», transmitindo a implícita noção, muito cara ao machismo lusitano, de que se trata de uma entre muitas. E, também assim, como se não lhe bastasse dar cabo do Amor, vão contribuindo para o ajavardamento semântico da Amizade"

A Causa das Coisas (texto com supressões)
Miguel Esteves Cardoso


E vocês? Chamam as coisas pelos nomes?

1 comentário:

Anónimo disse...

Se não me engano, existe outro livro deste mesmo autor que dá pelo nome de "Os meus problemas" que é também muito divertido. Gostaria de poder chamar as coisas pelos nomes, sempre que me apetecesse. Quase nunca mo permito.